Moradores de comunidades cariocas contam como programa que reforma casas precárias mudou suas vidas
Casa Carioca, da Secretaria de Ação Comunitária, faz serviços como instalação de portas e janelas, impermeabilização, emboço e pinturas artísticas nas fachadas.
Um cenário desolador, composto por paredes com tijolos quebrados e expostos, goteiras, cheiro de mofo, chão batido, plástico na janela servindo de cortina e lençol como porta. O banheiro? Sem revestimento, tomado por infiltração, apenas com um pedaço de cano no lugar do chuveiro e vaso desparafusado, ligado a uma caixa de descarga que não funciona. Tudo isso ficou no passado, e Vera Regina da Silva, de 68 anos, preferiria nem lembrar. Moradora da Cidade de Deus, ela foi uma das contempladas no projeto municipal Casa Carioca, da Secretaria de Ação Comunitária, que, desde 2022, leva melhorias a moradias em condições precárias na cidade, cujos donos não dispõem de condições financeiras para realizar uma reforma. Agora, o programa concentra esforços na região, onde passou a atender também na Asa Branca, em Curicica, e na Darcy Vargas, na Taquara.
A obra na casa de Vera incluiu emboço, pintura, revestimento de paredes, chão e teto, impermeabilização da laje, instalação elétrica e de pontos de iluminação, reconstrução do banheiro, com vaso, pia, chuveiro e azulejos novos, instalação de uma bancada americana na cozinha, recuperação da calçada e revitalização da fachada, que recebeu uma intervenção artística colorida. Ela celebra o fato de, agora, poder desfrutar de um lar digno.
– Hoje, eu me sinto num castelo ou num spa. Sabe o que é entrar num banheiro, abrir o chuveiro e tomar um belo banho? Agora, eu posso fazer isso. Antigamente, nem box tinha. Quando chovia, molhava minha casa toda. Era água entrando pela janela, pela porta e pelo teto; eu precisava espalhar mais de 20 baldes por causa das goteiras. Era puro fedor de mofo, e meu filho ficou com bronquite asmática. A frente era horrorosa; parecia um mausoléu. Eu me escondia e tinha vergonha de receber visita; era como se eu morasse na rua. Queria morrer o mais rapidamente possível. Agora que minha casa está a coisa mais linda, sou uma mulher feliz e quero viver muito para aproveitar. Estou fazendo questão de que as pessoas venham me visitar. As portas e as janelas, que só viviam fechadas, agora estão envidraçadas e só ficam abertas, mostrando a beleza do meu lar. Semana passada, choveu muito, e não caiu uma gota na minha casa. No quarto, colocaram uma porta de madeira, e eu estou até com pena de tirar o plástico. Estou tão alegre que abraço e beijo as paredes.
Além de intervenções como reboco, troca de telhado, revestimento com piso, pintura, aumento da ventilação com abertura de janelas e basculantes e instalações elétrica e hidráulica, o programa faz adaptações em lares que abrigam pessoas idosas e com deficiência, como a construção de rampa de acesso. Cerca de sete mil moradias já foram requalificadas na cidade, o que beneficiou cerca de 30 mil pessoas. As famílias alvo são identificadas pelo programa Territórios Sociais, do Instituto Pereira Passos (IPP) em parceria com o ONU-Habitat, por meio de visitas presenciais.
Foto: Maria Gomes. Moradora da comunidade Asa Branca desfruta de sua cozinha reformada.
Inspiração na própria infância
– A ideia desse projeto surgiu de uma dificuldade que eu testemunhei na minha própria infância. Sou oriunda de comunidade, cresci em Rio das Pedras, e meus pais não tinham condições nem para pintar a casa. Usávamos cal. Sei bem o que é essa dor, e a proposta é diminuir a angústia de quem vivencia isso há anos, recuperar a autoestima e devolver a dignidade – explica Marli Peçanha, titular da Secretaria de Ação Comunitária e idealizadora do programa.
– É algo muito assustador as condições insalubres em que vivem essas pessoas; há casas em que, pasmem, nem banheiro há. E nosso esforço é para que morem num ambiente mais seguro, saudável, arejado e aconchegante. Além disso, geramos empregos, porque a mão de obra, como pedreiros e bombeiros hidráulicos, é da própria comunidade.
Livre dos ratos
Outra beneficiária da Cidade de Deus é Fátima Cristina Goulart, de 61 anos, que vive com três filhos e cinco netos num imóvel que começou a ser reformado no início do mês. Ela conta que só a esperança de ter um “lar de verdade” já encheu seu fim de ano de alegria.
– Minha casa estava com o telhado prestes a cair, o chão todo quebrado, as paredes descascando e com os tijolos aparentes. O banheiro não tinha pia, o vaso estava solto, o ralo estava entupido. Eu não aguentava mais, mas não tinha como fazer nada. Agora, estou dando essa reforma de presente para a minha mãe e minha avó, que, antes de morrerem, tinham o sonho de reformar essa casa, mas não conseguiram. Até o momento, emboçaram as paredes, o que já melhorou o visual, deixando com mais cara de casa. Minha autoestima estava lá embaixo; agora, subiu e estou muito feliz. Antes, eu tinha uma moradia para me esconder da chuva, apesar de a água molhar dentro de casa; depois da obra, creio que terei um lar – festeja Fátima.
Reynaldo Assis, aposentado mostra o andamento da obra em sua casa, na Asa Branca. Morador da Asa Branca, Reynaldo Assis, de 74 anos, é outro contemplado pelo projeto. A obra em seu domicílio começou em setembro e está em andamento. As paredes já foram revestidas e pintadas de branco. No teto, um novo forro foi instalado. Ele conta que comemora cada passo da reforma:
– Agora, estou livre dos ratos que entravam pelo forro de PVC, que era muito danificado. Minha casa também foi impermeabilizada, emboçada e pintada. Um dos quartos vai receber piso. Vou ganhar também uma barra de apoio na escada para evitar acidentes. Moro aqui há 32 anos e nunca tive condições de fazer essa obra. A minha casa está sendo transformada, e vou cuidar da conservação. É uma vitória!
Outras localidades
Na Zona Norte da cidade, o programa já chegou a locais como Complexo da Maré, Complexo do Alemão, Complexo da Penha e Jacarezinho.
Na favela Nova Holanda, na Maré, um dos contemplados com a reforma foi o idoso Claudio Silva, que é PcD e faz uso de sonda. Sua casa recebeu emboço, pintura, piso, troca de janelas e de portas, esquadrias, instalações elétricas, impermeabilização, reforma do banheiro e do telhado, instalação de rampa com guarda-corpo para cadeira de rodas na entrada e itens de acessibilidade no interior. O que mais o deixou feliz foi a possibilidade de se tornar mais independente.
– Antes eu não tinha a rampa e não podia nem descer (de um andar para outro) e sair de casa. Agora melhorou da água para o vinho. Posso sair sozinho, sem precisar de ajuda de ninguém. Uma beleza, uma glória! – vibra ele.
Fonte: O Globo
Madson Gama
+Marli Peçanha