Não é à toa que as catástrofes acontecem. Nós ainda temos muito que aprender
Penso que em nossa origem, Humanidade em sua origem, somos essencialmente seres dotados de uma construção sentimental de solidariedade. Entretanto, as relações sociais estruturadas na utilização, consumo e abuso da matéria, seus derivados e seus bens, nos rouba de algum modo daquela origem solidária para o exercício do egoísmo. A base dessa ideia é que sociedades tradicionais, como as indígenas por exemplo, vivem uma configuração de solidariedade, enquanto que as sociedades urbanas vivem uma configuração de competitividade. Também quando lançamos um olhar antropológico sobre a religião, é impossível não notar que todas elas têm em comum o apelo ou a orientação para a Solidariedade e para a Fraternidade coletiva a partir do indivíduo e suas ações. Não é outra a orientação que, resumidamente, se encontra nos tratados socioculturais das famílias, embora estas trabalhem a solidariedade apenas entre seus membros.
Quanto ao egoísmo que acomete todos nós, não estou falando necessariamente de um egoísmo enquanto defeito, mas do egoísmo dito necessário para a sobrevivência, aquele egoísmo que é uma versão do instinto de sobrevivência e prevenção e que, quando dito aceitável para os padrões atuais das relações sociais, nos dá no mínimo uma atitude blasé, como nos descreve George Simmel. E já que toda dor vem do desejo de não sentirmos dor, com nos lembra o músico Renato Russo, só posso acreditar que o egoísmo, mesmo quando aceitável, é o nosso instinto de sobrevivência elevado à potência do distúrbio sociocomportamental, no caso um distúrbio sociocomportamental normalizado por nós a partir de milênios vivendo as nossas relações com base na competitividade material e intelectual, o que se acentuou consideravelmente na Alta Modernidade em que vivemos atualmente.
Olhando por este viés, creio que o nosso Ser Total, originalmente solidário, vive diariamente em conflito com as necessidades impostas pela sociedade, quando tais necessidades nos levam a competir repetidamente e a acumular em excesso. Tal conflito nos é mais inconsciente do que consciente, mas nem por isso deixa de nos causar os mais variados males. De um lado o desejo – quase oculto e imperceptível – da solidariedade, e do outro a necessidade imposta para o acúmulo pessoal e as vitórias, cujo exercício nos dá o conceito atual de felicidade e prazerosa satisfação. Mais do que isso, somos impelidos a disputar espaços com o outro todos os dias em praticamente tudo, buscando a vitória quase a qualquer preço (e às vezes tiramos o quase e ficamos a qualquer preço mesmo), pois se alguém tem que perder, antes ele do que eu. É como atualmente pensamos. As estruturas da nossa sociedade nos jogam inevitavelmente uns contra os outros, e nos torna competidores e adversários, às vezes vorazes. E a tendência é que quanto mais vitórias acumulamos, mais implacáveis e sedentos de vitórias nos tornamos. Mas há algo de errado em vencer? Não, não há! A questão está em que na atual configuração social, para um ganhar, fatalmente o outro tem que perder. Isso acontece desde o destaque na sala de aula na infância, até a vaga no emprego quando adulto. Em se tratando de sociedade ocidental, somos educados para isso desde criança. Família, escola e sociedade nos ensinam principalmente isso: lutar, conquistar, vencer, ultrapassar! O outro não existe nesse universo, a não ser em forma de adversário a ser vencido!
Se somos socialmente formatados para sermos competidores, negando a nossa origem solidária, lógico que o Ser Competidor e o Ser Solidário em algum momento acabam entrando em choque dentro de nós, mesmo que seja no inconsciente imperceptível do nosso eu. Esta guerra acontece em quantidades mais ou menos intensas dentro da maioria de nós. Eis a guerra íntima e diária de muita gente. Esta guerra interna e cotidiana travada em cada um de nós, dispara armas contra nós mesmo, podendo ir do mais leve distúrbio psicoemocional ao mais devastador surto de sociopatia, se convertendo tais distúrbios, não raro, em doenças graves que atingem mentes e corpos.
É o Ser Competidor em nós nos dobrando às regras de uma sociedade materialmente competitiva, versus o Ser Solidário que ainda respira e se nega a morrer por ser nossa origem. Arrisco dizer que no terceiro milênio a guerra mais severa e de maiores consequências de todos os tempos está sendo travada dentro de nós mesmos. Teremos que tomar dolorosas – porém importantes – decisões para escolher quem desses dois seres sairá como vencedor. Não podemos esquecer de priorizar pelo equilíbrio, pois matéria e essência humana precisam conviver em harmonia. Todavia, digo sem sombra de dúvidas que até o Século XX nós resolvemos muito bem a questão da inteligência e da competência. Agora no Século XXI o grande desafio é resolver o problema da convivência, e para este problema não há ciência ou tecnologia que consiga ser melhor e mais eficaz do que a origem solidária quase morta e esquecida que jaz dentro de cada um de nós. Resta saber quando deixaremos de ser competitivos para sermos colaborativos. Mas e daí? Quem é que quer saber disso?
Estas crenças eu já trazia comigo desde antes da Pandemia. Quando no começo desse texto eu disse que as catástrofes são necessárias, é porque o Ser Competidor não deixa o Ser Solidário aflorar, e então nós vamos aprendendo pelas dores das catástrofes coletivas e pessoais, vamos aprendendo pela dor quando poderíamos aprender pelo amor, se déssemos mais espaço ao Ser Solidário.
Mas não pensem que a dor chega como uma criação mágica feita especialmente para nos punir. Precisamos lembrar que o que acontece no mundo acontece pela ação humana. Então as dores que acontecem no mundo estão longe de serem uma criação divina proposital para a punição de cada um de nós. As dores que acontecem no mundo nada mais são do que a nossa negação do Ser Solidário que existe em nós. O simples fato de o negarmos já abre espaço para as dores que a competição desenfreada e desequilibrada pode causar. Temos sido então os únicos responsáveis e provocadores das nossas próprias dores. Chega de culpar Deus, para aqueles que acreditam em Deus, e chega de culpar o acaso, para aqueles que acreditam no acaso. A questão é muito clara: o Ser Humano, para a sua sobrevivência, depende das relações solidárias para ter boa qualidade de vida mental, psicológica e emocional. Mas a configuração da nossa sociedade praticamente nos rouba esta possibilidade todos os dias. E não raro nos rouba tal possibilidade até na família, ou até no lar, espaço mais íntimo onde seria mais fácil de sermos solidários reais.
Sempre que penso nos três ideais da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – fico me perguntando que fim levou o terceiro ideal, muito embora os dois primeiros sejam verdadeiros embustes, pois não são reais, com o segundo sendo ainda mais ilusório do que o primeiro.
Falam tanta coisa sobre a pandemia causada pelo Coronavírus. Só esquecem de dizer que ela reflete o atual momento evolutivo da Humanidade. O Coronavírus é tão danoso e mortal quanto nós. Não faz nada de diferente do que o Ser Humano já fez até hoje. Nosso principal medo do Coronavírus talvez não seja por ele ser mortal, e sim por ele ser invisível, o que o faz fugir quase que totalmente ao nosso controle. O que nos lava à ilusão de que temos algum controle sobre o mal visível, daí o medo do invisível.
No geral a Pandemia foi boa para mim. Tive a oportunidade de exercitar a humildade e provocar a solidariedade, e de entender novas visões de mundo, novas dimensões do Ser Humano.
Outros fatos me chamaram a atenção. Apesar de saber o quanto é péssimo o modelo político nacional e o quanto são péssimos 99, 99% dos políticos brasileiros, eu percebi que tais políticos podem ser ainda piores. Roubar na Pandemia, desviar verbas dos hospitais de campanha, levou tais políticos à dimensão de genocidas em potencial. O Estado Brasileiro não gosta dos brasileiros. Além disso, a corrupção é uma doença na alma da nossa cultura, e dos nossos mecanismos sociais, políticos e econômicos. Como se vê, o Ser Competitivo ainda segue bem mais forte do que o Ser Solidário, e atua tanto na esfera do olhar desprezível que qualquer um de nós pode endereçar para o outro, quanto nas esferas mais poderosas da sociedade.
Também vi que a intelectualidade acadêmica não é tudo, e obviamente não poderia ser, pois não raro ela também é usada apenas como uma forma de competição, quando deve ser essencialmente uma forma de auxílio benéfico para a evolução humana.
Mas virou o ano, virou minha vida. Tudo mudou de fatos e profundidade. Agradeço a todos as boas vibrações e ajudas. Foi um momento singular e divisor de águas para mim. Muito grato!
No final de tudo, percebi que as minhas experiências pandêmicas estão entre as melhores. Exercitei virtudes que estou longe de possuir, experienciei práticas cujas teorias eu já dominava, ganhei vivência, terei mais estórias para contar. Isso sem falar de como foi importante descobrir quem as pessoas realmente ainda são. E também quem realmente eu sou!
Virou o ano, virou minha vida. A Pandemia foi para mim um profundo aprendizado que me preparou para coisas melhores. Eu não poderia obter o que eu sempre esperei da vida se eu não passasse por tal momento, pois certamente eu colocaria tudo a perder sem ter a experiência que agora tenho. Agora minhas imperfeições são menos catastróficas do que antes, embora minhas escassas virtudes sejam ainda esforços de sementes.
Os convites à solidariedade estão cotidianamente espalhados por todos os lugares e pessoas. Nós é que ainda somos praticantes daquela atitude blasé, e nossas consciências optam por não ver o que deveria ser visto. Não posso falar por ninguém. Quase nunca se consegue ver a luz no caos, e seria injusto pensar que todos a deveriam enxergar. Cada um ainda experimenta a mesma dor sentindo-a de forma diferente, o que dá para cada um consequências e atitudes diferentes. Mas uma coisa sabemos: outras dores ainda virão, pois é preciso que as dores venham para contradizer o Ser Competidor e acordar o Ser Solidário. Quem se preocupar em acordar mais rápido o Ser Solidário aprenderá mais pelo amor do que pela dor. Mas se isto ainda está longe de acontecer, o despertamento continuará pela dor. Sendo assim, sigamos aprendendo. Então, feliz Pandemia para todo mundo!
Sérgio Luiz Ribeiro
Palestrante e Escritor Espírita