Minha família está viciada no Jogo do Tigrinho. Hoje, sou a única que saiu, mas temo pelo futuro

04/06/2025 |
Assunto: , Comportamento, Games

Ex-viciada em jogos de azar teme o destino da família após todos sucumbirem às apostas

MarieClaire20250604Mãe de dois filhos relata como está tentando deixar para trás os jogos de azar em uma família assombrada pelo vício em apostas. Irani Santos da Silva conta como o Jogo do Tigrinho chegou à sua casa por meio de sua filha, e detalha o momento em que perdeu tudo e percebeu que, se não parasse, o jogo traria grandes consequências.

Irani Santos da Silva estava desesperada. Em meio a lágrimas e passando por uma crise de ansiedade, a saída que encontrou para buscar ajuda foi relatar o ocorrido em um vídeo e compartilhá-lo nas suas redes sociais. O resultado foi positivo. Mais de meio milhão de internautas visualizaram o registro. Nele, Irani lamenta o fato de ter perdido todo o dinheiro que estava juntando. Depois desse episódio, ela segue há uma semana sem jogar, com o desejo de seguir fora das plataformas de apostas. Mas um empecilho maior segue preocupando a vida dela: sua família inteira também está viciada.

A realidade de Irani não é exceção. Segundo dados apresentados em um levantamento feito pelo Instituto DataSenado, em outubro de 2024, cerca de 20,3 milhões de pessoas com mais de 16 anos afirmam ter investido em apostas esportivas, o equivalente a 13% da população do Brasil com essa faixa etária. O panorama fica ainda mais grave quando se analisa uma pesquisa feita pela Universidade de São Paulo (USP), que estimou que há cerca de 2 milhões de pessoas viciadas em jogos no Brasil.

A mulher, que está atualmente desempregada, já tinha ouvido falar em jogos como esse, mas só quando sua filha recebeu um link para participar e o compartilhou com todos os membros de sua família que ela realmente mergulhou nesse universo arriscado. “Vimos que ela estava ganhando dinheiro e feliz, então começamos a achar interessante. Não tem como não se atrair”.

Então, a partir daí, não só Irani e sua filha, Livia, que passaram a jogar, mas também o marido dela, Renato, e até a mãe dela, dona Iracemi. “Eu não tinha o vício”, alega. “Comecei a depositar, mas não era constante. Só que no início você fica empolgado, porque ganha bastante. Como eu já tinha problemas com ansiedade e enfrentei uma depressão no passado, passei a jogar tanto que não me dei conta do dinheiro que estava colocando ali dentro”.

E argumenta: “Para a pessoa que tem depressão ou ansiedade, o jogo abre um espaço. Você começa com pouco, R$20, R$30, e passa para R$50, R$100, R$200”. Irani relata que utilizou o aplicativo como forma de passar o tempo, sem nem se dar conta da importância do que estava apostando. “As pessoas acham que é ganância por dinheiro, mas nenhum prêmio que ganhei passou dos R$300. Não era uma vantagem, nunca tinha lucro. Só que com o passar do tempo, nem bônus ou prêmios eu estava ganhando. Não tinha retorno, somente os meus depósitos.”

A última aposta
A mesma conta que gravou o fatídico vídeo que viralizou no TikTok quando havia perdido um dinheiro que estava guardando há um bom tempo. Isso fez com que ela sentisse o início de uma crise de ansiedade. “Um remorso muito grande, vontade de morrer. Fiquei 30 minutos paralisada no tempo, com pensamentos sombrios que envolviam até tirar minha própria vida. Não tinha como desabafar com o meu marido, porque ele iria ficar muito chateado”.

Mulher lamenta ter perdido milhares em jogos de azar por conta do vício
Irani não consegue quantificar o tanto que já perdeu com os jogos, e nem fez as contas. No entanto, ela estava no nível 26 no aplicativo, que, para alcançar, é necessário movimentar cerca de R$30 mil em apostas, entre ganhos e perdas.

Os gastos despertaram nela um sentimento de grande culpa. Além de Livia, Irani também é mãe de um bebê de seis meses de idade. Ela se arrepende de ter perdido apostas cujo dinheiro poderia gastar oferecendo uma vida melhor para o filho. “Cheguei a perder R$5.200 de uma vez. Podia ter comprado roupas, a fórmula que ele toma. É uma sensação horrível”.

Ela conta que o episódio relatado em suas redes a fez querer desistir de vez dos jogos. Além disso, seu pai, que está com uma suspeita de câncer, também a motivou a largar o vício, por mais difícil que seja. “Prometi nunca mais jogar se o resultado da biópsia que ele realizou vier negativo”, diz. Os exames já foram feitos, mas a resposta ainda não foi revelada. Até lá, ela segue na tentativa de não retornar às plataformas. Porém, o ambiente em que está inserida torna tudo mais difícil.

O vício para cada membro da família
Irani comenta que conversou com seu marido e lhe pediu ajuda para parar. E por mais que ele mesmo não tenha conseguido interromper o vício, Renato busca jogar apenas quando ela não está vendo, como quando vão dormir.

Em sua compreensão, a influência dos jogos de azar gerou mudanças de comportamento nos integrantes de sua família. “Minha mãe ficou descuidada. O jogo tira a vaidade da gente, meio que entramos em um estado de depressão. Ela mudou completamente depois que passou a jogar. Fica toda noite sentada, jogando”.

E sobre a filha, entende que a menina adotou um comportamento bastante agressivo. “Ela começou a pedir dinheiro na internet para alimentar o vício. Diz que ‘está passando fome’. Tem interesse em vender as coisas dela. Está muito agressiva, principalmente quando perde. Grita com a gente, é como se fosse um vício em drogas mesmo, algo que não conseguimos explicar. Tenho medo de que faça algo errado”.

O destino de muitas famílias
Hoje, a preocupação de Iracema, além de voltar às plataformas, diz respeito ao futuro da família. “Não sei onde isso vai parar”, admite, apreensiva. “Tenho medo de que minha filha agrida alguém por dinheiro, ela está bebendo agora, coisa que não fazia antes.”

“Cada dia que passa, são novos cassinos criados. A tendência é só piorar. Eu estou tentando cumprir minha promessa. Mas acho, de verdade, que eles só vão parar quando se sentirem prejudicados. Até então, não vejo que têm interesse. Pedi para pararem, mas não me ouviram. Acho que cada um vai enfrentar suas consequências”.

O medo de Irani não é gratuito. O levantamento do DataSenado citado anteriormente ainda indicou que 42% dos brasileiros que alegam ter gasto alguma quantia em apostas esportivas dentro de um mês estão endividados, o que dificulta não só o pagamento da dívida, como qualquer perspectiva a respeito de uma possível melhora de vida.

Fonte: Revista Marie Claire
João Maturana
+Comportamento
Leia também: O VÍCIO QUE ROUBA VIDAS E O SILÊNCIO QUE TAMBÉM MATA

Voltar Próximo artigo