Sempre pensei que os seres humanos e a vida seriam diferentes e melhores se tivéssemos o emocional suficientemente forte para viver cada dia com a consciência plena de que, a qualquer momento, podemos morrer, lembrando o velho ditado popular constantemente dito por minha avó: Para morrer basta estar vivo.
Hoje ouvi uma música que me remeteu à minha mãe e ao pedido que ela me fez quando eu era criança: “Aprenda a tocar esta música e toque no dia em que eu morrer.” Não aprendi a tocar a música, mas consegui que uma conhecida a gravasse e cumpri o pedido de mamãe – a linda valsa tocou desde o momento em que percebi que ela já não estava aqui até o momento de seu sepultamento. Foi uma emoção forte e esta crônica é uma consequência.
Temos medo de acidentes, de balas perdidas e de mosquitos. Há muito em nosso dia a dia que justifique uma certa preocupação, mas vivemos e sobrevivemos alegremente sem pensar muito no assunto. Em tempos de guerra, suponho eu, a consciência da morte é constante, mas há sempre a possibilidade de se esconder, se proteger e tentar evitar a catástrofe. Mas e agora? Como estamos lidando com o que está acontecendo agora?
Por mais que eu me proteja, ocorreu-me que posso ser contaminada pelo COVID-19 ao tocar em um saco de supermercado; ao sentar no sofá onde alguém sem sintomas tenha se sentado algumas horas antes; ao, inocentemente, abrir uma lata de leite condensado que não foi bem lavada ao chegar do mercado. Pior do que isto, ocorreu-me que se for contaminada e nocauteada por este vírus, posso estar morta em dois ou três dias, talvez menos, sem ter tido tempo de me despedir dos entes amados, sozinha em um leito de hospital, com vários tubos enfiados em minha garganta.
A consciência da morte possível é nestes dias uma constante, estamos diante de um inimigo que não podemos ver e que pode estar em qualquer lugar. Esta crônica seria a depressão total não fosse pela conseqüência destes pensamentos: será esta a nossa chance de pensar seriamente na possibilidade da morte, perder o medo e decidir mudar em todos os aspectos que tornam nossas vidas e a de muitos ao nosso redor um verdadeiro pandemônio: egoísmo, ambição, usura, inveja, sectarismo, fanatismo, preconceito e tantas outras pragas constantes em nossos noticiários; nas atitudes belicosas de tantos governantes do planeta; nas drogas usadas por tantos jovens que se perdem e destroem famílias; nas atitudes absurdas dos que julgam o outro pela cor de sua pele, por sua preferência sexual ou religiosa, ou simplesmente porque detesta o tipo de música que o outro gosta?
Talvez a pandemia tenha trazido consigo a consciência do pandemônio em que vivemos, sem necessidade. Hoje temos condições tecnológicas eficientes capazes de dar a todos os seres do planeta condições para que vivam com o mínimo de dignidade e bem estar; temos possibilidade de espalhar pelo mundo as atitudes de bondade, respeito e solidariedade que estamos presenciando por parte de tantos ao lidar com a pandemia.
É. O medo da pandemia talvez nos faça avaliar o pandemônio que criamos para nós mesmos. Talvez o medo constante da morte nos faça aprender a valorizar, respeitar e melhorar a vida – a nossa e a de todos. Espero ter alguma razão.